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Por que a criança cozinha na polenta

1 nov

“Imagino o céu.
Ele é tão grande, que logo adormeço, para me acalmar.
Quando acordo, sei que Deus é um pouco menos do que o céu. Senão, adormeceríamos sempre de susto na hora de rezar.
Será que Deus fala outras línguas?
Será que ele entende os estrangeiros?
Ou será que os anjos ficam sentados em pequenas cabine de vidro fazendo traduções?

E EXISTE MESMO UM CIRCO NO CÉU?

Mamãe diz que sim.
Papai ri, teve más experiências com Deus.
Se Deus fosse Deus, desceria para nos ajudar, diz.
Mas por que ele deveria descer se, afinal de contas, nós viajaremos até ele mais tarde?
Seja como for, os homens acreditam menos em Deus do que as mulheres  e as crianças, por causa da concorrência. Meu pai não quer que Deus seja também meu pai.”

Por que a criança cozinha na polenta

Não, este não é um livro de culinária. Também não é um história infantil.Ou sim. Mas diferente. Não para crianças.
Uma família de artistas de circo foge da ditadura de Ceausescu, na Romênia, em busca do sonho de liberdade, riqueza, fama e felicidade na Europa ocidental. Quem nos conta a fascinante história é uma menina. A leveza e flexibilidade circenses contrastam com a rigidez e o desequilíbrio de uma realidade sem truques. A Aglaja Veteranyi não interessava a aura de romantismos que envolve nossas fantasias sobre picadeiros e palhaços: “Eu não poderia ter escrito de outro jeito. Só da perspectiva de uma criança era possível relatar toda a crueldade e imoralidade dessa história.”
Não, mas esse não é um livro de verdades e revelações. Não há segredos de bastidores. É um livro sobre limites, sobre fronteiras. Não sobre fronteiras definidas, estanques, mas, sim sobre fronteiras constantemente permeáveis, indefinidas. Entre o poético e o grotesco, entre realidade e imaginação, entre o sonho e a desilusão, entre ficção e autobiografia, culpa e inocência.
Há um movimento de pêndulo,entre contrastes, que perpassa o livro em vário níveis. Em primeiro lugar, no nível da história. A pequena narradora transita entre o vivido e o imaginado, entre a compreensão e a construção do mundo em que vive. Há histórias dentro da história, dentro da história, como uma boneca russa sem contornos definidos. Por fim, o limite entre a realidade e a imaginação já não importa mais. Talvez a imaginação tenha sido mero andaime para a revelação das sensações, dos medos e mágoas, sonhos e alegrias – estes, sim, reais.
O jogo de transposições e simultaneidades está igualmente presente na linguagem, ora poética, doce, ora navalha-na-carne. Ás vezes, as duas coisas ao mesmo tempo. Mas sempre concisa, quase minimalista. O que já quase estabeleceria o próximo contraste: entre a intensidade da narrativa e a brevidade da linguagem. Ou, ainda, entre a ingenuidade dos relatos e a brutalidade dos fatos. E, mais, entre a poesia da das imagens e a crueza dos atos.
Apesar do fundo auto-biográfico, Aglaja não recai em mero memorialismo. A realidade não está impregnada de elementos absurdos, surreais, mas a dimensão desta presença é impossível de definir. Certamente há aí mais episódios verídicos do que se possa imaginar. Mas isso não importa. O que é absurdo na vida absurda?  Aglaja detestava que se lesse ‘a Polenta’ como a história de sua vida. Nas entrevistas, quando a pergunta surgia, ela sorria sem ironia e dizia: “A imaginação também é autobiográfica”.
Neste malabarismos de perspectivas, a síntese é a arte de andar na corda bamba, de viver no limite entre tudo e todos e, finalmente, no limite da própria identidade.

A tristeza envelhece.
Eu sou mais velha do que as crianças no estrangeiro.
Na Romênia, as crianças nascem velhas, porque já são pobres dentro da barriga das mães e ficam ouvindo as preocupações dos pais.
Aqui, vivemos como no paraíso. Mas, mesmo assim, eu não fico mais jovem.

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Nome do Livro no Brasil: Por que a criança cozinha na polenta
Nome Original: Warum das Kind in der Polenta
Escrito por: Aglaja Veteranyi
Publicado no Brasil em: 2004
Editora: DBA Artes Gráficas
Nº de Páginas: 195
Capa original: